domingo, outubro 18

Onde se guardam os sentimentos

Costumo pensar que tenho um lugar para os meus sentimentos e para as pessoas que a eles associo. No coração, que invariavelmente se divide, tenho o cantinho das minhas filhas. Ali, logo, naquele pedaço tão acessível e terno que todos os dias se remexe ao ve-las mudar, crescer e voar. Nele tenho também o canto do Raul. Um canto enorme, mutavel e imutavel em tão diferentes coisas. Mil cantos tem o meu coração. Misturam-se, sem dúvida, em vez de se compartimentarem e alojam rostos queridos. Sei bem onde visitar cada um e conheço o odor que até lá me leva. Nos olhos, a tristeza. A que se espelha de dentro para fora e a que me invade de fora para dentro. Neles se aloja, se lava e se renova na esperança que lhes devolve o brilho. Nas mãos a vontade. O desejo forte de construir. Nelas deposito os meus pedaços de querer em cada dia e delas deixo cair grãos de cimento e areia que se moldam e encaixam deixando abertos caminhos. No estômago, aqui bem no centro de mim, o medo, a insegurança, a incerteza. Quantas lutas de apertos tem este centro com as minhas mãos que teimam ignora-las e fingir que sabem bem quais os grãos de areia que devem, em cada momento, ser deixados no caminho. Nos ombros, as palavras sábias dos meus pais. Aquelas que hoje se confundem com a responsabilidade de ter criado vida, de ter criado uma vida em torno de mim e de ser por ela responsável. Quantas vezes não consigo mante-los erguidos... Na boca a minha defesa. Porque dela me saem os pensamentos, se estrutura o meu racciocinio e se reproduz tudo o que dentro sinto. Organizado, coeso, com sentido. Mesmo quando dentro o tal aperto no centro do corpo doí e queima. No colo, bem aninhadas, as memórias. Outras, nos braços, que com o colo se juntam e protegem o que passou, deixando aquele sabor e cheiro a recordação feliz. Só há um sentimento que não consigo alocar. A desilusão. Não é tristeza e nos olhos não fica. Não é medo e não se espeta no centro de mim. Tão certeiro é e tão fulminante que não lhe encontro espaço para poder geri-lo. Acho que me fica, algures, na garganta, até ser capaz de lhe dar um sentido e depois... depois transforma-lo em qualquer outro sentimento com lugar e sitio próprio.


Texto escrito em Agosto de 2009

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